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É difícil perceber o momento em que alguém deixa de fazer  uso saudável e produtivo da internet para estabelecer com ela uma relação de dependência — como já se vê em parcela  preocupante dos jovens.

Com o título “Preciso de ajuda”, Carolina G. fez um desabafo aos integrantes da comunidade Viciados em Internet Anônimos, a que pertence no Orkut: “Estou muito dependente da web. Não consigo mais viver normalmente. Isso é muito sério”. Logo obteve resposta de um colega de rede. “Estou na mesma situação. Hoje, praticamente vivo em frente ao computador. Preciso de ajuda.” O diálogo dá a dimensão do tormento provocado pela dependência da internet, um mal que começa a ganhar relevo estatístico, à medida que o uso da própria rede se dissemina. Segundo pesquisas recém-conduzidas pelo Centro de Recuperação para Dependência de Internet, nos Estados Unidos, a parcela de viciados representa, nos vários países estudados, de 5% (como no Brasil) a 10% dos que usam a web — com concentração na faixa dos 15 aos 29 anos. Os estragos são enormes. Como ocorre com um viciado em álcool ou em drogas, o doente desenvolve uma tolerância que, nesse caso, o faz ficar on-line por uma eternidade sem se dar conta do exagero. Ele também sofre de constantes crises de abstinência quando está desconectado, e seu desempenho nas tarefas de natureza intelectual despenca. Diante da tela do computador, vive, aí sim, momentos de rara euforia. Conclui a psicóloga americana Kimberly Young, à frente das atuais pesquisas: “O viciado em internet vai, aos poucos, perdendo os elos com o mundo real até desembocar num universo paralelo — e completamente virtual”.

“O  mundo paralelo é melhor”

“Com 14 anos, ganhei meu primeiro computador e fui,  pouco a pouco, me tornando dependente dele, sem me dar conta da gravidade disso.  Há seis meses, desde que concluí a escola e fiquei ociosa, ainda sem saber qual  faculdade seguir, passo em média oito horas por dia navegando — e sempre me parece  insuficiente. Na internet me refugio da timidez. Tenho um blog e frequento as  redes sociais, onde já conto com 300 amigos e arranjei até namorado. Só me sobrou  uma amiga dos tempos pré-internet, e as refeições eu faço apenas em frente à tela.  Vivo num mundo tão à parte que, confesso, saio à rua e acho tudo estranho. Sou  uma pessoa improdutiva, e o mais assombroso é que tenho total consciência disso.  Ainda não procurei tratamento, mas talvez seja o caso.” Marilia  Dalabeneta, 18 anos

Não é fácil detectar o momento em que alguém deixa de fazer uso saudável e produtivo da rede para estabelecer com ela uma relação doentia, como a que se revela nas histórias relatadas ao longo desta reportagem. Em todos os casos, a internet era apenas “útil” ou “divertida” e foi ganhando um espaço central, a ponto de a vida longe da rede ser descrita agora como sem sentido. Mudança tão drástica se deu sem que os pais atentassem para a gravidade do que ocorria. “Como a internet faz parte do dia a dia dos adolescentes e o isolamento é um comportamento típico dessa fase da vida, a família raramente detecta o problema antes de ele ter fugido ao controle”, diz o psiquiatra Daniel Spritzer, do Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas, sediado no Rio Grande do Sul. A ciência, por sua vez, já tem bem mapeados os primeiros sintomas da doença. De saída, o tempo na internet aumenta — até culminar, pasme-se, numa rotina de catorze horas diárias, de acordo com o estudo americano. As situações vividas na rede passam, então, a habitar mais e mais as conversas. É típico o aparecimento de olheiras profundas e ainda um ganho de peso relevante, resultado da frequente troca de refeições por sanduíches — que prescindem de talheres e liberam uma das mãos para o teclado. Gradativamente, a vida social vai se extinguindo. Alerta a psicóloga Ceres Araujo: “Se a pessoa começa a ter mais amigos na rede do que fora dela, é um sinal claro de que as coisas não vão bem”.

“Só  o sono me faz parar”

“Há dois anos,  minha relação com a internet deixou de ser saudável. Sinceramente, não sei em  que momento eu perdi a medida. Entro no computador para trabalhar em meu projeto  de conclusão de curso da faculdade e, quando me dou conta, estou às voltas com  conversas infindáveis no Orkut. Isso me preenche. Sei que pode me custar até uma  repetência, mas é irresistível. Já faltei a muita festa de amigo só para ficar  on-line. Minha mãe acha que devo moderar, e talvez esteja certa. Cogito procurar  ajuda médica. Hoje, nada no mundo faz com que eu me desconecte daquele computador  — só o sono.” Tiago Lourenço, 25  anos

Os jovens são, de longe, os mais propensos a extrapolar o uso da internet. Há uma razão estatística para isso — eles respondem por até 90% dos que navegam na rede, a maior fatia —, mas pesa também uma explicação de fundo mais psicológico, à qual uma recente pesquisa da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, lança luz. Algo como 10% dos entrevistados (viciados ou não) chegam a atribuir à internet uma maneira de “aliviar os sentimentos negativos”, tão típicos de uma etapa em que afloram tantas angústias e conflitos. Na rede, os adolescentes sentem-se ainda mais à vontade para expor suas ideias. Diz o psiquiatra Rafael Karam: “Num momento em que a própria personalidade está por se definir, a internet proporciona um ambiente favorável para que eles se expressem livremente”. No perfil daquela minoria que, mais tarde, resvala no vício se vê, em geral, uma combinação de baixa autoestima com intolerância à frustração. Cerca de 50% deles, inclusive, sofrem de depressão, fobia social ou algum transtorno de ansiedade. É nesse cenário que os múltiplos usos da rede ganham um valor distorcido. Entre os que já têm o vício, a maior adoração é pelas redes de relacionamento e pelos jogos on-line, sobretudo por aqueles em que não existe noção de começo, meio ou fim. “Hoje eu me identifico mais com Furyoangel, meu apelido na web, do que com meu próprio nome”, reconhece Marcelo Mello, 29 anos, ex-estudante de direito e gerente de uma lan house no Rio de Janeiro.

Desde 1996, quando se consolidou o primeiro estudo de relevo sobre o tema, nos Estados Unidos, a dependência da internet é reconhecida — e tratada — como uma doença. Surgiram grupos especializados por toda parte, inclusive no Brasil, como o da Santa Casa de Misericórdia, no Rio de Janeiro, e o do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, na Universidade de São Paulo. “Muita gente que procura ajuda aqui ainda resiste à ideia de que essa é uma doença”, conta o psicólogo Cristiano Nabuco de Abreu. O prognóstico é bom: em dezoito semanas de sessões individuais e em grupo, 80% voltam a níveis aceitáveis de uso da internet. Não seria factível, tampouco desejável, que se mantivessem totalmente distantes dela, como se espera, por exemplo, de um alcoólatra em relação à bebida. Com a rede, afinal, descortina-se uma nova dimensão de acesso às informações, à produção de conhecimento e ao próprio lazer, dos quais, em sociedades modernas, não faz sentido se privar. Toda a questão gira em torno da dose ideal, sobre a qual já existe um consenso acerca do razoável: até duas horas diárias, no caso de crianças e adolescentes. Quanto antes a ideia do limite for sedimentada, melhor. “Os pais não devem temer o computador, mas, sim, orientar os filhos sobre como usá-lo de forma útil e saudável”, avalia a psicóloga Ceres Araújo. Desse modo, reduz-se drasticamente a possibilidade de que, no futuro, eles enfrentem o drama vivido hoje pelos jovens viciados.

Três anos perdidos

“Desperdicei três anos da minha vida jogando Tibia, um game no computador cuja graça, para aficionados como eu, é ser infinito. Passava pelo menos seis horas por dia em frente à tela e, longe dela, não conseguia pensar em outra coisa senão na hora em que voltaria ao jogo. Foi uma época negra. Não saía de casa e perdi os amigos. Estava tão isolada que, por iniciativa própria, decidi restringir, por ora, o computador na minha vida. Esse processo de desintoxicação, imagino, deve ser tão sofrido quanto o daqueles que tentam largar o álcool. Você precisa reatar as velhas amizades e até se acostumar de novo à vida ao ar livre. O saldo é bom.” Caroline Parreiras, 18 anos

 O computador é como um  filho

“Cheguei a cursar a faculdade de direito, mas me dei conta de que o que  queria mesmo era alguma atividade ligada ao computador. Por isso, virei gerente  de lan house, local onde me sinto em casa. O mundo que se abre na internet é infinitamente  mais estimulante do que o real. Quando o jogo é bom, não paro nem para comer.  Isso para não falar da alegria de explorar novos aplicativos e baixar um filme  que ninguém mais tem. Se estou com dinheiro na mão, gasto tudo em melhorias para  o computador. É como um filho. Talvez devesse ter uma vida mais sociável e pisar  um pouco no freio com a internet, mas, para ser franco, não é o que eu quero.  Hoje, gosto mais de ser chamado pelo meu apelido na web, Furyoangel, do que pelo  meu próprio nome.” Marcelo Mello,  29 anos

Fonte: Revista Veja

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